Oi pai,
Sinto muito sua falta. Gostaria
de ter tido sua companhia nos últimos 25 anos. Resolvi então lhe escrever essa carta. Sabe pai, tanta coisa aconteceu...
Uma pena não ter conhecido minha filha,
sua neta. Sei que ela curtiria muito você como avô. Lembro do carinho que teve
com a primeira e única neta que conheceu. Aliás, ela se casou recentemente. A
segunda neta, que estava na barriga da mãe quando você se foi, também já casou.
Hoje alguns de seus netos estão graduados, pós-graduados e outros estão a
caminho. Seriam motivo de orgulho para o avô. Você teve no total, 9 netos: 5
meninas e 4 meninos.
Você se foi em um período que eu estava começando a ter uma nova vida, estava recém-casada. Não me esqueço do quanto tremia ao adentrar a igreja comigo e eu tentava te acalmar. Fui a única de minhas irmãs a ter esse privilégio, ter você me levando ao altar. Estava muito nervoso e emocionado. Sei o quanto meu casamento te deixou feliz, porque sei que amou meu marido desde o primeiro momento. Se tornou seu amigo rapidamente. O sentimento de amor da parte dele, foi recíproco.
Quando tinha 8 anos de idade, soube que você estava
doente. Vocês tinham comprado um terreno com uma casinha nos fundos. O sonho
era construir uma casa na frente, onde criariam seus filhos, que na época já
somavam quatro. Por não conseguir continuar trabalhando no emprego que
permitiria a realização desse sonho, teve que devolver o terreno e a casa. Que
tristeza! Voltamos a morar de aluguel e o sonho nunca se realizou.
Você tinha na época, somente 34 anos. Seu estado de
saúde só piorou ao longo dos anos seguintes, mas nunca, mesmo doente, deixou de
trabalhar para termos onde morar.
A insuficiência renal crônica que teve, lhe rendeu
três cirurgias para remover pedras de um único rim que funcionava. Até hoje me
pergunto: qual a probabilidade de alguém ter um rim mirrado (encolhido) e no
outro um problema tão sério de disfunção? Mas, você teve, infelizmente. Se o
problema surgisse hoje, talvez você tivesse um tratamento adequado.
Lembro-me dos últimos anos de sofrimento, fazendo
hemodiálise duas vezes por semana. Você ia sozinho ao hospital, porque
estávamos trabalhando e/ou estudando. Muitas vezes passou mal e chegava em casa
quase transparente, sem cor, semimorto. Era triste ver seu sofrimento.
Infelizmente o transplante de rim não aconteceu a tempo e Deus achou que era a
hora de te levar.
Gostaria de te agradecer. Foi você quem
me estimulou sempre a estudar para nunca ter que passar dificuldades como
havíamos passado em casa. Se precisasse trabalhar, eu teria uma
formação. Comprava nosso material escolar com seu décimo terceiro e
deixava só os livros para depois. Era uma preocupação sua que estudássemos.
Tinha isso como prioridade.
Nunca nada nos faltou, porque sei
que Deus cuidou de nós e outras pessoas também ajudaram. Mas, não posso tirar o
seu mérito quanto ao esforço que sempre fez para sustentar nossa
família. Deixou um bom exemplo para nós como filhos. Sempre foi
batalhador e trabalhador.
Lembro nos finais de ano, das caixas de
guaraná que comprava (tinha uma coleção de garrafas retornáveis) e da caixa de
uva que nunca faltava. As coxinhas enormes, não podiam faltar também e era
assim a nossa festa. Como crianças, nos satisfazíamos nessa simplicidade.
No dia a dia, gostava de comer a comida
sempre com farinha. Se não tinha na hora do almoço ou jantar, pedia para alguém
ir comprar.
Minha gratidão a Deus por ter tido um
pai tão esforçado e responsável. Nunca fugiu à luta até o final de sua vida.
Sei de sua história de vida, o quanto
sofreu desde pequeno. Perdeu o pai aos 9 anos e teve que conviver com um
padrasto violento. Perdeu junto com seus dois irmãos, a herança deixada pelo
pai, por causa dessa pessoa sem escrúpulos e que também era viciada em jogos.
Sei que não era uma pessoa amorosa, porque nunca recebeu amor. Hoje até entendo
esse lado de sua personalidade.
Admiro a flexibilidade que tinha em relação ao
trabalho. Você foi motorista de caminhão, bancário, garçom, pintor de paredes,
pipoqueiro, fotógrafo, vendedor ambulante, etc. Sempre encontrava algo para
fazer mesmo doente.
Lembro que sempre gostou de música e instrumentos. Havia cantado no coral da igreja uma certa época. Nós, os filhos, acho que os sete, herdamos sua veia musical, mas somente na voz. Admirava a facilidade com que conseguia tocar instrumentos que lhe chegavam às mãos. Lembro da gaita, do acordeom e do violão. Acho que chegou a tocar instrumento de sopro também. Sua veia musical em relação aos instrumentos, a maioria de nós não herdou. Até aprendi um pouco de piano na adolescência e você me incentivava, mas não fui em frente. Somente um de nós toca violão e não sou eu porque nunca me interessei.
Ah, e a Matemática? Era admirável!
Apesar de ter estudado pouco, sabia fazer cálculos de cabeça como ninguém. Não
precisava de calculadora. Até aprendi um pouco esses cálculos de cabeça, mas
nunca o superei.
Bem, vou ficando por aqui. Gostaria que
estivesse aqui para comemorarmos essa data. Você se foi e deve estar muito bem.
Infelizmente, não poderei dizer pessoalmente o quanto te amei e amo as
lembranças que deixou. Nem todos têm esse privilégio, de ter um pai-herói, como
eu tive.
Te amei como filha, mas acho que quase
não te falei isso. Um dia nos encontraremos e quero te abraçar muito. Me
aguarde! Não sei se demoro, porque ninguém sabe o dia de amanhã.
Ah, esqueci de te contar que a mãe
continua por aqui. Bem, você deve saber, porque ela ainda não te encontrou.
Beijos. Fica com Deus!
Com muito amor, de sua filha, Raquel.